Os Símbolos no Cotidiano


Símbolos são encontrados em toda parte da realidade cultural humana conformando nossa mente e vida com seus diversos tipos, níveis e camadas de significados. Esta é uma realidade muito mais significativa para a vida do que se costuma considerar. Em nosso cotidiano podemos observá-los em sistemas de orientação como trânsito, mapas, nas religiões, etc. As linguagens com a qual nos comunicamos também são compostas por símbolos. Uma outra utilização dos símbolos bastante influente nas sociedades dos dias de hoje pode ser encontrada nos logotipos do marketing empresarial. Em cada uma dessas diversas aplicações, símbolos são utilizados em propósitos específicos sem que estejamos muito ciente de sua natureza ontológica mais profunda.

Começando por uma caracterização bastante geral, podemos afirmar que o ser do símbolo é a indicação, um apontar para algo além dele mesmo: o simbolizado, assumindo a sua posição. Não se reduzindo a esta primeira camada de caracterização, o símbolo alcança uma significação mais profunda. Mario Ferreira dos Santos, um dos filósofos que se dedicaram ao estudo da natureza dos símbolos, em seu Tratado de Simbólica, pesquisou como os símbolos participam do processo do conhecimento humano em seu nível mais fundamental e profundo de compreensão, apreensão, registro e transmissão da realidade. Abordando cientificamente a realidade dos símbolos, ele explica como os símbolos desempenham uma função terminantemente central em nossa vida intelectual, na maneira pela qual apreendemos e interpretamos nossas experiências no mundo. Não possuindo apenas um caráter instrumental para a nossa compreensão, eles participam também de um modo integrativo e estrutural de nosso psiquismo profundo em sua relação com a totalidade universal do cosmos. O filósofo brasileiro, na esteira de Platão, afirma que o caráter mais especial que um símbolo pode alcançar é servir de “linguagem universal do acontecer cósmico”. Neste sentido, podemos extrair do Timeu de Platão que


“(…) o deus inventou a visão e a nós a conferiu para que pudéssemos observar as revoluções da inteligência no céu e as aplicássemos às revoluções do entendimento que se acha em nosso interior, uma vez que há um parentesco entre elas, ainda que as nossas sejam sujeitas à perturbação e aquelas sejam imperturbáveis; e que via aprendizado e participando dos cálculos naturalmente corretos, por imitação das revoluções absolutamente invariáveis do deus, nos capacitássemos a estabilizar as revoluções variáveis no interior de nós.”

Seguindo nesta esteira, Olavo de Carvalho, outro pensador brasileiro que se debruçou sobre o simbolismo, indica as mudanças das fases da lua como o símbolo naturalmente observável dos aspectos dinâmicos da nossa compreensão do mundo, um símbolo que intrigou e inspirou a humanidade nos primeiros momentos de seu interesse pelo conhecimento do mundo ao seu redor.

Passeio ao Luar

Peder Kroyer


O simbolismo pode ser considerado, assim, uma via complexa de apreensão das essências universais das quais os indivíduos participam. Na Simbólica, Mario Ferreira dos Santos explicita, de um modo estruturado, como a função dos símbolos é servir de interface epistêmica na compreensão destas essências, nos proporcionando entendimento e orientação no mundo. Nas suas palavras:


Assim, ao esquema noético, que construímos das coisas, corresponde um esquema concreto, que está nas coisas que por sua vez, corresponde ao esquema ou estrutura eidética, que está na ordem do ser. Consequentemente, as formas que estão ante rem, antes das coisas, no Ser, estão in re nas coisas, e post rem em nosso espírito, ou nos esquemas sensíveis da imago ou no abstrato noético da universalidade (no conceito).”


A importância do simbolismo reside no fato de nele estar em questão a relação de conformação das nossas noções e concepções de vida ao cosmos, considerando toda sua complexidade e estratificação. Esta conformação é gradual e ocorre de acordo com o desenvolvimento particular alcançado pelos indivíduos em cada momento de sua história. Assim, fica evidente como a qualidade dos símbolos e da relação com a simbolismo com a qual nossa mente opera é de sensível relevância no processo de desenvolvimento pessoal. Dado estas noções preliminares, este texto abordará os aspectos epistemológicos e concretos do simbolismo que são mais enfaticamente pertinentes ao entendimento da nossa presente situação de mundo e ao autoconhecimento, demonstrando o valor que a riqueza do universo imaginário pessoal pode ter para uma vida com mais qualidade no aspecto emocional e psicológico.

O Deslocamento da Posição dos Símbolos na Sociedade Moderna

Inicialmente, um dos fatos mais cruciais que devemos constatar é como nas sociedades hodiernas o nosso imaginário se tornou cativo das estruturas de produção e consumo em massa. Quase em toda parte nas ruas nos deparamos com algum outdoor, até mesmo dentro de casa somos alvejados por dezenas de propagandas na televisão, dentre outros tantos métodos que o marketing utiliza para captação de atenção. Esta exposição excessiva à publicidade e à apelatividade do consumo perturba severamente a referencialidade de identidade dos indivíduos, são inúmeras organizações disputando os recursos econômicos e o desejo das pessoas.

O processo através do qual as organizações de capital conquistam as subjetividades para que seus comportamentos econômicos sejam dirigidos a seu favor é orientado pelo marketing, a disciplina pela qual estas organizações se relacionam com o consumidor através de logotipos para identificação e anúncios publicitários. Nestes casos, o simbolismo foi superficialmente incorporado e adaptado a uma dinâmica de relacionamento mercadológico em que é predominante a dimensão material da vida. Nela, os símbolos são utilizados como referenciais para relações econômicas de fidelização de clientes, aos quais se visa associar e veicular padrões consumíveis de identidade relativos a um mercado alvo. É justamente nesta esteira que a professora de marketing Alice M. Tybout e Gregory S. Carpenter definem, em um trabalho conjunto, marca como “um nome, um símbolo ou um símbolo associado a um produto ou serviço e ao qual os compradores vinculam significados psicológicos.”

A profusão social exagerada destes referenciais mercadológicos de identidade sobrecarregam e desviam a atenção para algo que não é essencial do ponto de vista do desenvolvimento individual. Essa problemática foi colocada do seguinte modo por Maristela Guimarães André ao abordar a relação entre consumo e identidade:


A questão que se coloca, aqui, é se os produtos, se as mercadorias são usadas, consumidas, para marcar diferenças sociais e, assim, transmitir mensagens, nos moldes de uma identificação do indivíduo como sujeito, levando-o cada vez mais a buscar ‘fora de si’ os critérios de uma identidade estável, ou, se essa identidade, não podendo abstrair do mundo, repleto da oferta de produtos, bens e serviços, flutua entre as referências locais e globais como um modo de ter acesso a alguma individualidade, ou, ainda, se trata-se de uma combinação de ambas as possibilidades, como confortáveis formas de trocas simbólicas.”


Nas sociedades modernas, onde a produção e o consumo são muito acentuados, as identidades são planejadas por agentes externos e baseadas em diferenciações relacionais de grupos sociais, em vez de serem constantemente complementadas racionalmente a partir de motivações internas próprias e autênticas, de acordo com a proposta Socrática de educação resumida pela frase inscrita na entrada do templo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.”.

Ruína do Templo de Delfos

A Natureza Ontológica dos Símbolos

Há uma maneira mais autêntica de se relacionar com a simbologia no que diz respeito a aplicabilidade de toda a sua plenitude ontológica, ao papel que deve ser devidamente atribuído aos símbolos em nossa vida intelectual. A natureza da verdadeira representação simbólica é algo mais profundo do que a maneira com que ela é apresentada em sua inserção na dinâmica do mercado. Como bem assevera Mario Ferreira do Santos: os símbolos são usados por “deficiência, mas também por proficiência”, eles não são como os conceitos, nem os termos científicos: sua capacidade de representar algo diz respeito a apreensão consciente e intuitiva das essências universais do cosmos na perspectiva de encontrar o sentido singular e vívido das nossas experiências concretas da realidade, enquanto esses outros esquemas mentais representam abstrações lógicas que são as determinidades comuns e repetitivas presentes em coisas semelhantes. “Com símbolos, expressamos o que não podemos fazer de outro modo”, nos esclarece ele. René Guénon expressa o princípio do simbolismo na seguinte passagem presente em “Os Símbolos da Ciência Sagrada”:


“Se o Verbo é Pensamento no interior e Palavra no exterior, e se o mundo é o efeito da Palavra divina proferida na origem dos tempos, a natureza toda pode ser tomada como um símbolo da realidade sobrenatural. Tudo o que existe, sob qualquer forma que seja, por ter seu princípio no Intelecto divino, traduz ou representa esse princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência. Assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem, concorrendo para a harmonia universal e total, que é como um reflexo da própria Unidade divina.”


Assim, ele apresenta a conclusão – baseando-se em Gênesis, 1, 26-27, onde consta que Deus fez o homem a sua imagem e semelhança – de que o homem mesmo pode ser considerado um símbolo das realidades mais perfeitas. Assim, conhecer os símbolos e compreender a universalidade mais elevada para qual eles apontam é a chave para os parâmetros da identidade mais profundos do nosso ser. A aplicação dos símbolos com os quais nos identificamos constitutivamente em nossa essência permite que nossa existência flua melhor ao longo de suas problematicidades históricas no mundo. Dizendo de outro modo, significa que os símbolos podem nos ajudar a compreender melhor nossa posição no cosmos e a tomar melhores decisões sobre por quais caminhos devemos seguir baseado neste conhecimento. Em ultima instância: ajuda em nossa adaptação psicológica à realidade circundante sempre cambiante.

De modo semelhante, Mario Ferreira dos Santos fala da Via Simbólica que, em resumo, significa a relação hierárquica entre o símbolo e o simbolizado; relação em que o primeiro participa parcialmente naquilo que pertence universalmente ao segundo. Da mesma forma que foi apontado por Platão, ele diz que “a inteligência humana participa de uma inteligência superior, divina, que está em estado absoluto. O símbolo, portanto, indica com a sua formalidade, em estado limitado, a referência a uma forma em estado superior, ou absoluto.”

Assim, vai ficando evidente que na lida com os símbolos está em operação o raciocínio analógico. Mas o que é a analogia? A origem etimológica da palavra é proveniente do grego αµαλωγος que pode ser traduzido como “proporção”. Na analogia está em atuação uma transposição proporcional de características de um nível para outro. Olavo de Carvalho nos volta a atenção para o fato de que “o prefixo aná, αµα, que constitui essa palavra, designa um movimento ascensional”. O raciocínio analógico é um movimento do espírito que transcende para níveis da realidade mais elevados em perfeição, é uma verdadeira contemplação da beatitude superior do Ser. Isto significa que na estrutura total da realidade existe um padrão de semelhança relacional – participação – entre os indivíduos sensíveis (múltiplo) e o correspondente universal (Uno). É neste sentido que Olavo afirma que “utilizamo-nos, portanto, das analogias, para subir da percepção sensível à apreensão da essência espiritual, para ir do visível ao invisível”. Não é a toa que Mario Ferreira dos Santos caracteriza o simbolismo como a “linguagem universal do acontecer cósmico”.

Podemos, por exemplo, aprender pela observação do sentido do comportamento da água como contornar uma oposição em vez de entrar em conflito violento com ela. A manifestação sensível da água pode, assim, ser considerada como um símbolo de um princípio universal que, por sua vez, pode ser aplicado a os processos da nossa vida. Deste modo, percebemos como também somos símbolos desse mesmo universal que é um paradigma de toda a realidade: o vértice superior da triangulação que é o cume de todas as determinidades que se encontram manifestadas em sua base. A dinâmica vital do ser humano pode ser considerada uma homologia da totalidade do cosmos permeada pela universalidade. Este movimento espiritual, motivado por uma intuição intelectual da universalidade, é denominado de dialética simbólica e descrito por Olavo de Carvalho da seguinte maneira:


os princípios universais geralmente chegam ao nosso conhecimento unicamente através de fórmulas abstratas, de modo que nos encontramos sempre divididos entre uma verdade universal e abstrata e uma experiência concreta destituída de verdade, destituída de sentido. A escalada das analogias visa justamente a transpor esse hiato, levando, na medida do possível, a um conhecimento vivido e concreto do universal.”


Em resumo, a dialética é um raciocínio que visa encontrar uma síntese, a unidade comum essencial e fundamental que sustenta ontologicamente uma multiplicidade de fenômenos sensíveis e semelhantes do mundo. Os símbolos são uma fonte impressionante de sabedoria que sempre fizera parte da cultura da humanidade desde os tempos mais antigos: celtas, gregos, japoneses, hebreus, entre outras; todas essas sociedades tradicionais presentearam a humanidade com uma riqueza cultural grandiosa de símbolos que podemos estudar e incorporar em nossa existência.

Colocada em sua devida posição e explicitado seus fundamentos, a problemática do simbolismo revelou ser uma questão essencialmente espiritual em vez de material econômica. As mentes se tornaram os objetivos centrais de disputa do século XXI, não apenas no marketing empresarial que almeja a venda massiva de seus produtos para a aquisição cada vez maior de capital e, consequentemente, poder. Também, é valendo-se desta realidade epistêmica humana que versam as narrativas retóricas políticas que almejam o poder institucionalizado da sociedade (quando não muito estas duas instâncias sociais se encontrarem misturadas). A passividade e docilidade com que o assentimento intelectual é entregue aos planos das grandes organizações só tende a ser desfavorável aos próprios indivíduos. As sombras no mundo apenas aumentam à medida que as corporações aumentam sua influência sobre a vida das pessoas. O avanço tecnológico dos meios de comunicação pode lançar ainda mais os seres humanos na obscuridade, pois torna o acesso às suas mentes muito mais fácil.

Dois Sátiros

Peter Paul Rubens

A Conquista Pessoal do Simbolismo

O desenvolvimento de um a instância crítica que se interpõe ao consumo dos símbolos superficiais com que somos alvejados pela cultura de massas é de extrema importância para vivermos nossa vida de acordo com a essência autêntica do nosso ser e não de acordo com os modelos presentes em novelas, filmes, slogan publicitários ou programas ideológicos partidários com a intenção de dirigir nossos comportamentos. Platão considera a reflexão racional como a função por excelência da alma racional:


De fato, na medida em que permanece completamente passiva e não executa um movimento circular no seu próprio interior e ao seu redor, repelindo o movimento exterior e exercendo o movimento que lhe é inerente, não é dotada, em função de sua constituição original, de uma capacidade natural para o discernimento ou reflexão relativamente a qualquer de suas próprias experiências. Por conta disso, ela é não outra coisa, senão um ser vivo, porém permanece estacionária e enraizada, uma vez que lhe falta o auto-movimento.”


Devemos buscar nossas próprias origens, percorrer nosso próprio caminho. A conquista pessoal do terreno do verdadeiro simbolismo é um passo indispensável para a liberdade interior. Além dos símbolos tradicionais, a literatura universal é uma ótima fonte de enriquecimento do arcabouço imaginário e simbólico individual. Na literatura é a universalidade da natureza humana que está sendo simbolizada em toda sua plenitude de possibilidades. O escritor cria símbolos que expressam os aspectos da realidade humana sentida e capta com sua intuição, vertendo-os em personagens, narrativas, diálogos, enfim: na estrutura que encontramos nas obras literárias.

Assim, a literatura nos fornece sentidos humanos prévios – outros mundos – registrados em símbolos no qual podemos referenciar nosso entendimento do mundo da vida. Quanto melhor for a qualidade universal da literatura, quanto mais elevado for o aspecto simbólico total que ela é capaz de sintetizar na linguagem, mais temos a ganhar em orientação e compreensão de sentido do mundo que vivemos. Dizendo mais diretamente: com a literatura adquirimos e aprendemos sentidos universais que podemos comparar e aplicar na realidade particular que vivemos para vencer a obscuridade encontrando as respostas para as situações problemáticas que podem nos fazem ficar estagnados. Neste sentido, Mario Ferreira dos Santos diz que:


“.(..)toda natureza, em sua linguagem muda, expressa-se através de símbolos, que o artista sente e vive, que o filósofo interpreta, e o cientista traduz nas grandes leis que regem os factos do acontecer cósmico.”


Um exemplo deste aspecto do fenômeno simbólico encontra-se presente de maneira bastante nítida em Esaú e Jacó de Machado de Assis que soube brilhantemente contextualizar e hierarquizar em camadas a dinâmica humana do conflito histórico e político, apresentando o conflito entre republicanos e monarquista no período histórico da proclamação da república paralelamente à sua projetação na escala individual representada pelos dois irmãos Pedro e Paulo, com as suas consequências e desdobramentos familiares, amorosos, e de posicionamento político.

Cumpre ao espírito humano o papel de produzir os modelos paradigmáticos que são as formas espirituais de uma cultura. A vida intelectual é a única via pela qual podemos viver autenticamente nosso próprio destino, é a única forma de viver pela qual nosso destino é realmente nosso para tomarmos nossas próprias decisões. De outro modo, estaríamos desperdiçando nosso tempo adormecidos e enredados nos fios da manipulação e do espetáculo, sendo recompensados apenas pela satisfação pueril dos apetites e desejos inferiores.


Referências

  1. Timeu: Platão
  2. Astrologia e Religião: Olavo de Carvalho
  3. Os Símbolos da Ciência Sagrada: René Guenon
  4. Marketing: Booby J. Calder, Alice M. Jybout
  5. Identidade e Consumo: Itinerários Cotidianos da Subjetividade: Maristela Guimarães André
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