Obscurantismo Político e Educação
O voto democrático é, apenas, a camada de interface mais superficial de uma realidade mais profunda cujos horizontes permanecem, em grande parte, obscurecidos no momento mesmo da sua concretização. É, apenas, a expressão material e quantitativa do processo qualitativo mais abrangente de formação da vontade dos indivíduos sobre o seu destino comum. Porém, este seu aspecto quantitativo tem se tornado, infelizmente, o aspecto desta realidade mais precipuamente visado pelos métodos dos políticos que disputam a ocupação dos espaços de decisão social do poder…
Este artigo se propõe a discutir e explicitar as relações que existem entre política e epistemologia com base no mito da caverna de Platão, visando demonstrar que o aspecto mais relevante que deve prevalecer na política não pode ser a mera vitória pelo maior número de votos, mas sim o papel da educação na formação das almas e como estes dois aspectos se mostram cada vez mais dissociados atualmente.

O Mito da Caverna
Jan Sanraedam
O Agroval Político
Para caracterizar o problema, nada melhor do que a arte para ser contraposta ao estado de coisas atual das ideias políticas na sociedade brasileira. Nada melhor do que a bela poesia tétrica e telúrica de Manoel de Barros para fazer um paralelo e ilustração à altura.
O Agroval é uma espécie de ambiente ecobiológico formado abaixo das abas de uma arraia que se prostra no fundo dos rios para passar a seca dos brejos. Um local onde, de acordo com as próprias palavras de Manoel de Barros, “lateja um agroval de vermes, cascudos, girinos e tantas espécies de insetos e parasitas, que procuram o sítio como um ventre”, onde “A troca de linfas, de reima, de rúmen que ali se instaura é como um grande tumor que lateja”. Seu Agroval é um local fantástico e asqueroso onde pode-se encontrar “os germes das primeiras ideias de uma convivência entre lagartos e pedras”, o “embrião de um muçum sem estames, que renega ter asas”, “um comércio de frisos e de asas, de sucos de sêmen e de pólen, de muda de escamas, de pus e de sementes” e muito mais… São “Os indícios de ínfimas sociedades.”, afirma, talvez em um sentido desqualificativo, talvez metafísico.
É justamente de modo semelhante que estamos começando a presenciar ideias imprecisas, categorias nem um pouco científicas e universalizáveis (algumas já pelos seus próprios termos) sendo propostas com uma seriedade política impecável. Não pretendo atuar de jornalista e elencar um enorme rol destas coisas. Para exemplificar, basta apenas citar a palavra “boyceta” que parece misturar uma palavra inglesa com uma palavra pejorativa do português. Basta! Cada indivíduo deve analisar e comparar, por conta própria, a realidade e as ideias por conta própria antes de entregar sua adesão.
Ainda nesta linha de proposições políticas, há o problema do gênero neutro no português. Um baita problema para a ciência linguística de Saussure, para quem as mudanças naturais que ocorrem ao longo do tempo, devido ao uso cotidiano da linguagem, prejudicam sua coerência sistemática interna. Imagina, então, a ordem de problemas decorrentes de uma mudança linguística proposta política e intencionalmente?! Constitucionais, no mínimo. Isto sem considerar o terrível problema gramatical implicado em “todes”. Deixo a cargo de vocês analisarem e observar o agroval morfológico surgindo diante do olhar quando se coloca, arbitrariamente, um elemento cuja função é de conjunção aditiva na posição de desinência de gênero ocupada por elementos com os quais correspondem a função de artigo definido.
Deste temível suco de truculências desarrazoadas quero, apenas, tratar de apenas mais uma figuração. Sem citar nomes, e mais uma vez recorrendo ao discernimento do leitor, temos uma situação não menos complicada no âmbito econômico. É possível, e necessário, distinguir dois tipos de debatedores neste campo. Temos, de um lado, alguns que enriqueceram dentro do sistema bancário e financeiro tornando-se milionário, ou até mesmo bilionário, e decidiram, em seguida, se rebelar – aparentemente – e cuspir no prato onde se alimentaram, passando a trabalhar para desacreditar, diante da visão de todos demais, o próprio caminho que tomou na vida. Por que será isto?! Por sorte, há uma outra categoria de multimilionários, alguns até mesmo provenientes das periferias da sociedade brasileira, que trabalham para despertar em outras pessoas a sensibilidade econômica necessária para alcançar a posição social agradável que alcançaram através do seu árduo, complexo e prolongado esforço. Sorte?! Talvez… Com relação ao primeiro tipo, ouso a hipótese de que já tendo construído seu mais do que farto patrimônio financeiro, e possuindo os conhecimentos técnicos e experiências necessárias para construir tudo novamente, caso o percam, visam impedir as outras pessoas de alcançarem a mesma posição social com o propósito oculto de obter monopólio da concentração de capital e do poder que dele decorre, provendo os demais apenas de dependência econômica e falta de autonomia financeira com seus discursos.
Basta aparecer um candidato disposto a representar as inconsistências e distorções e teríamos a perfeita analogia com a arraia de Manoel de Barros. Mas não é que neste exato momento em que este artigo é escrito estamos sendo representados por um candidato que se elegeu com os votos de setores ideológicos apartados e em disputa de espaço político legislativo (proporcional e colegiado) na sociedade brasileira, a saber: o público LGBT+ e o público religioso evangélico?! Como realizar esta proeza a não ser através da arte retórica mentirosa direcionada para ambos os lados, nem um pouco comprometida com a verdade e racionalidade, mas sim com a manipulação das paixões do público? Arte que conta hoje com a ajuda adicional do padrão técnico típico de segmentação, funil e conversão de público da disciplina do marketing, de mais amplo alcance?! Uma proeza vinda justamente de um partido que dizem – as más línguas – ser comunista. Qual é o fio de coerência política interna que há neste fato a não ser o desvirtuamento do critério quantitativo de votos que o princípio da maioria entrega para a democracia com o objetivo de alcançar o poder?!
Já que estamos falando de jornalismo, ainda na outra aba da arraia encontra-se o problema da distorção na comunicação de informações que é um aspecto vital para a formação de opinião das sociedades democráticas. Trata-se do problema dos meios de comunicação da grande mídia vendendo espaço para quem estiver disposto a pagar o preço. No lugar de sobriedade objetiva e descritiva, o jornalismo vem se tornado cada vem mais ébrio fazendo desde assessoria politica partidária – quando os interesses coadunam, deve-se ressaltar – à veiculação de propaganda e terrorismo de guerra, passando a exercer a função prescritiva através da distorção das informações em função de propósitos epistêmicos de manipulação da opinião e direcionamento de comportamento. Não passou muito tempo desde a cobertura sensacionalista da última epidemia suspeita. É interessante observar como, no seu ápice de sensacionalismo, poucos se deram conta de como a sua difusão pelo mundo ocorreu devido aos meios técnicos de transporte avançados, mas qualquer crítica tecida no auge do calor das emoções açuladas pela mídia não é racionalmente considerada e pode ser rechaçada violentamente. Tão poucos reconhecem a existência histórica e reincidente de epidemias no passado que também se espalharam pelo mundo devido aos meios técnicos de transporte. Fernão de Magalhães devia estar se remoendo em seu túmulo.
Os bem alimentados à mesa pouco se sensibilizam com a quantidade de mortes por fome no planeta por ano enquanto está chovendo informações atualizadas de instante em instante sobre o número de mortes provocados por outra causa selecionada não por acaso, apenas para fazer a morte parecer algo extraordinário. Sensibilidade estimulada seletivamente e direcionada convenientemente para aspectos determinados da realidade, desprezando o âmbito total do problema, é, no mínimo, incoerente. Com o passar do tempo, o extraordinário se mostrou não ser tão extraordinário assim, o “novo normal” não chegou, se com este jargão não se fizer referência às mudanças geopolíticas e históricas intensificadas nos últimos tempos que, justamente, são a origem da divulgação de interpretações distorcida dos fatos no mundo. Quem consideraria que poderia haver alguém por trás do show de televisão?!
Com este paralelo, é impressionante observar como os seres humanos, não dispondo do poder suficiente para distorcer a ordem da natureza, distorcem seus próprios mundos. Enfim, sem mais delongas, pois a comparação com a arraia de Manoel de Barros já está perdendo sua força, é preciso deixar logo claro que Platão era um crítico da democracia. Desde os tempos da democracia dos antigos, períodos de decadência assim eram observados, talvez não na intensidade que estamos presenciando atualmente. Seu posicionamento mais aristocrático era motivado por estas e outras causas, mas principalmente pela condenação popular e vil de Sócrates. Sua crítica era ampla e seguia várias linhas de abordagens, passando pelos excessos da libertinagem e problemas pertinentes à qualificação de quem exerce o governo neste regime, sendo este último seu aspecto central. Por exemplo, a metáfora presente em 488a-e do diálogo “A República”, traz a imagem de marinheiros que, sem os conhecimentos náuticos suficientes, disputam entre si o comando do leme, entendendo cada um a seu modo o que deve ser o piloto e assediando o dono do navio para que lhes entregue o leme. Assim, são muito mais conhecedores dos métodos de adulação um dos outros e de intrigas do que dos ventos, das estações, do céu, dos astros, enfim, do que diz respeito à arte de navegação. O resultado é evidente.
O Mito da Caverna na Atualidade
Ao longo da história, a tradição política da democracia que já entrou em declínio, despareceu por um tempo e depois ressurgiu séculos mais adiante. É necessário cogitar se estamos passando pela etapa de declínio novamente. Sintomas claros disto estão associados com a distorção das visões de mundo na intenção de manipular comportamentos para propósitos obscuros. O avanço das tecnologias de comunicações, que trazem novos desafios para a democracia, nem de longe tornou o mito da caverna de Platão obsoleto, muito devido ao seu teor de universalidade e penetração na natureza política humana.
Após mais de dois milênios de fundação da democracia pelos gregos, qual seria a diferença que caracteriza e diferencia o momento atual, que estamos vivendo, do transcurso já observado anteriormente de declínio? Não é nada mais do que passagem do tempo, que através da transmissão entre as gerações sucessivas, dissolve a importância e força dos valores legados pela tradição. Assim como Cronos que devora seus filhos, as forças políticas, em sua meta cada vez mais ambiciosa pelo poder, parecem não estar mais interessadas em respeitar e conservar valores fundamentais que conformaram a humanidade ao longo de todo este tempo. Este é fator central da problemática, e o valor central que está em risco não é tanto o discurso da democracia, e sim o λόγος.

Saturno Devorando um Filho
Francisco de Goya
O conceito de λόγος foi desenvolvido filosoficamente por Heráclito de Éfeso por volta do século V antes de Cristo. O termo é utilizado para designar as mais variadas funcionalidades da faculdade racional humana: discurso, proporcionalidade, medida, ordem, conhecimento, coerência, etc. Foi este conceito, em seus múltiplos desdobramentos, que fundamentou os desenvolvimentos religiosos, éticos e científicos das sociedades atuais durante estes longos dois milênios que transcorreram até os tempos atuais, como os alicerces que sustentam uma construção levantada com o trabalho dos indivíduos vivos sobre a contribuição já realizadas por aqueles que o antecederam.
É sobre o desenvolvimento da cultura do espírito racional humano inserido na dinâmica política que se trata a alegoria da caverna. Sua importância se justifica agora mais do que nunca antes. Mesmo na época da Grécia antiga, os principais adversários da παιδεία platônica não se insurgiram intencionalmente contra a razão para destruir e distorcer as instituições sociais mais relevantes como a linguagem, por exemplo. Os sofistas apresentavam uma outra perspectiva técnica de educação e os retóricos, apesar de mais perigosos, acreditavam na busca pelo poder e influência como uma caminho relevante para a vida, talvez ainda conservassem algum escrúpulo.
Resumidamente, a alegoria apresentada a ascensão epistêmica do conhecimento verdadeiro da realidade a partir do domínio das concepções prematuras, superficiais e obscurecidas de mundo, no qual todos estão tomados em sua necessária inserção na dimensão comum que constitui a vida social compartilhada. A caverna é o próprio símbolo da cidade grega antiga (πόλις). Inicialmente, seus cidadãos encontram-se acorrentados uns aos outros de frente a uma parede onde sombras (εικόνες) passam e são tomadas como os verdadeiros objetos da realidade. Neste estado, a percepção ainda não se voltou de modo conscientemente direto e desimpedido para eles. Tal obscurantismo é projetado através de muro localizado às costas dos habitantes onde são transportados objetos alvejados pela luz secundária de uma fogueira originando as reflexões imagéticas das sombras. São atenuações da realidade que são refletidas na parede para a qual estão voltados. O protagonista do mito Platônico é aquele que consegue se desprender das correntes sociais e realizar a subida da caverna até alcançar a contemplação mais perfeita da realidade através da verdadeira luz do Sol, em um percurso denominado de Ἀνάβασις.
Nesta representação do método epistêmico filosófico de Platão está implicada uma gradação na percepção que os indivíduos são capazes de fazem do Ser. O espírito filosófico percorre uma linha dividida entre o sensível e o intelectual para ascender desde as meras sombras das coisas até a verdadeira meta que Platão coloca para a educação dos indivíduos: compreender e abarcar no próprio espírito a Ideia do Bem (τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέαν toú agathoú idéa) como o paradigma supremo de orientação e medida na realidade. Na metafísica teológica de Platão, o Sol, como fonte da luz que possibilita a visão, simboliza o Bem que é a fonte de onde emana a existência e o conhecimento verdadeiro do Ser. Assim, a meta da educação platônica contida na alegoria da caverna é tornar melhor o ser humano tanto na perspectiva de percepção mais apurada e elevada da realidade, quanto em virtudes éticas, as duas não encontram-se dissociadas em seu pensamento. Em seu método educacional está empreendido uma elevação e aperfeiçoamento do ser humano até a ideia do Bem como fonte de todo o Ser, a concepção de educação presente no pensamento de Platão é uma evolução gradativa do espírito racional humano para níveis cada vez mais elevados de realidade, de conscienciosidade do Ser.
Acontece que o acesso à percepção dos indivíduos é a chave que os artífices de sombras, os fabricantes de obscurantismo, precisam para direcionar os comportamentos políticos através da manipulação de sombras da realidade. A passagem dos tempos, que se afasta cada vez mais das fontes de surgimento da tradição, já deixou evidente para aqueles que ambicionam o poder como a formação de indivíduos esclarecidos não é conveniente para seus planos, pois eles se tornam capazes de desmistificar e denunciar suas concepções distorcidas, organizações, relações e desígnios secretos de poder.
Na composição de seu Estado ideal, Platão atribuiu um papel primordial à educação na formação da classe dos guardiões e governantes da polis. Nele, estariam aptos ao poder, apenas, os selecionados como mais qualificados para serem bem-sucedidos em um rigoroso processo educacional voltado exclusivamente para a formação de uma casta dedicada aos assuntos públicos. Seu Estado ideal não é democrático, não existe a possibilidade de entregar o governo da polis nas mãos de pretendentes de qualquer proveniência. O rei filósofo, a quem compete governar, é proveniente desta classe estritamente educada para as questões políticas; é aquele que fez o percurso de ascensão da caverna e decidiu voltar, por estrita consciência de dever e gratidão com a cidade que o educou, para governar seus concidadãos de acordo com o paradigma do Bem que alberga em seu espírito.
Em uma democracia onde o povo é o componente central do exercício e das relações de poder, a manipulação de suas visões de mundo se torna uma etapa inadiável para os pretendentes que querem usurpar o poder e ultrapassar os limites que estão delimitados pela constituição. O comportamento eleitoral de um povo mal instruído e desamparado é presa fácil para a distorção epistêmica das narrativas sobre a realidade social. O obscurantismo político, a manipulação estratégica daquelas sombras refletidas na caverna a partir da qual o povo compreende e sente inicial e precariamente a realidade, parece se tornar a arte política por excelência na democracia. Os próprios políticos, e demais pretendentes ao poder, estão gerando uma política democrática disfuncional que não é feita em função e representação do povo, mas sim dos interesses de poderes ocultos que instrumentalizam seu comportamento eleitoral e político através de concepções distorcidas veiculadas em narrativas estratégicas montadas sobre a realidade política e social.
A representatividade é apenas um aspecto ideal que envolve mais propriamente uma disputa velada entre as forças do obscurantismo político que visa angariar partidários para seus planos e as forças de esclarecimento político do povo. Uma disputa que atravessa todas as instituições sociais. O conflito entre luz e sombra nunca esteve tão pulsante no cerne das sociedade quanto nos tempos atuais.
Embora a crítica de Platão seja dirigida para as tradições gregas e para o estado social da época que a democracia libertina e degenerada põe em derrocada, e apesar do contrassenso aparente que possa surgir diante do estágio tecnológico avançado da sociedade atual, a alegoria da caverna continua com toda plenitude de sua força simbólica na interpretação nos tempos atuais, se mostrando ainda mais relevante como uma aquisição cultural para a compreensão de suas práticas políticas. A relação é inversa: os efeitos da tecnologia na vida intelectual e nas relações de poder pendem a balança para o lado dos poderosos. A tecnologia favorece a atuação do poder sobre a vida dos indivíduos através da criação de meios técnicos cada vez mais avançados para o exercício do controle social sobre suas liberdades e mentes. O sistema de crédito social Chinês é uma destas políticas já em prática atualmente, cujos objetivos de controle é encobertado por uma justificativa do tipo bem coletivo que, na verdade, nada mais visa do que aumentar o poder de atuação do Estado (dos poderosos) sobre a esfera particular de liberdade do indivíduo favorecendo o abuso de poder. O totalitarismo tecnocrático distópico já foi antecipadamente representado em obras literárias como, por exemplo, o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.
A novidade é que as cavernas, agora, estão com telas digitais na parede, onde ainda passam as mesmas sombras da realidade, porém coloridas. Os efeitos da tecnologia digital na vida das pessoas ainda é pouco conhecido. Os mais experientes, que atravessaram as mudanças dos tempos até hoje, já apontam para o fato de que o aumento vertiginoso na velocidade dos acontecimentos afeta negativamente a paciência e disposição dos mais jovens para os processos racionais do espírito que demandam mais tempo…
Imagem e Realidade
Uma análise e aprofundamento adicional é necessário para esclarecer a relação entre a imagem da realidade presente na mente e a própria realidade, e como está relação pode ser desvirtuada. Recorrendo, mais uma vez, a uma imagem mitológica – porém estando ciente de que se trata de uma imagem – será utilizado a versão do Narciso de Ovídio. O mito trata da sina de um belo jovem que se apaixona incorrigivelmente por sua própria imagem refletida em um lago fenecendo por ser impossível possuí-la como um amante real e se transforma na bela flor que recebe seu nome, bem como o vício de caráter. Um castigo dos deuses por ter sido extremamente frívolo e orgulhoso ao ponto de rejeitar todos seus pretendentes que não foram considerados dignos de sua afeição.

Narciso
Caravaggio
O mito ajuda a retratar como o comportamento epistêmico que estabelecemos com relação as imagens da realidade (as sombras da caverna, o reflexo no lago) pode não aparecer suficientemente esclarecido como tal. Se trata de um lapso, uma omissão no conhecimento, de uma falha na percepção que acontece quando consideramos as imagens, que são meras reflexos das coisas reais, como se fossem a própria realidade. Uma falha que é ocasionada por uma atitude epistêmica equivocada de apego e paixão excessivas pelas imagens e fantasias que foram instauradas no espírito, isto em detrimento da objetividade real das coisas. Uma falha que desvanece a articulação entre as imagens e representação que carregamos da realidade e a realidade em si, fusionando tudo em apenas um único momento de conhecimento não verificado. Os decorrentes equívocos de desorientação no mundo mostram-se severos, pois o acesso à realidade é obstruído e a mente fica teimosamente aprisionada no erro na medida de sua irresponsável passionalidade.
Investir na imagem pública e recorrer a discursos que apelam diretamente para as paixões, se valendo desta suscetibilidade epistêmica no comportamento eleitoral, é a estratégia eleitoral mais comum nas democracias para ganhar os cobiçados votos do público. Os políticos democráticos contemplam muito mais a retórica do que a verdade. Isto vale não apenas para as eleições, eles se alongam até onde seus projetos de poder podem alcançar, até mesmo a uma tirania populista caso continuem recebendo adesão irrefletida as suas ideias e propostas distorcidas sem que lhe seja oposto resistência. Pode acontecer de um modo tal que as pretensões populista de um lado podem se ver barrada por uma disputa contra um populismo oposto, com os dois lados disputando participação nas instituições corrompidas. Em caminho da decadência, as eleições parecem cada vez mais um espetáculo de horror, tudo se trata de fazer seu candidato preferido ganhar com o comportamento eleitoral do povo se aproximando das torcidas de futebol, enquanto a verdadeira realidade das relações políticas é desprezada pela consciência dos eleitores.
A cultura e formação de espíritos independentes e racionais adequadas para que o voto democrático alcance sua meta é algo que cabe à educação, mas isto não interessa aos políticos que buscam sempre tirar proveito do obscurantismo político do povo. A consciência crítica e investigativa não convém para os poderosos que sempre tentarão se aproveitar de técnicas de manipulação da percepção da realidade, das falhas da consciência, para implantar políticas perversas e indefensáveis racionalmente. Traídos, ludibriados e envaidecidos pelo poder que pensa estar em suas mãos, sem nunca dar o braço a torcer e mudar de opinião, o povo pode sempre continuar idolatrando suas imagens políticas como Narciso faz com a sua própria. As incoerências, os abusos políticos, inobservância das leis, os privilégios onerosos continuarão passando por entre os vãos da fraqueza de consciência e poderão ser apoiados, posteriormente, pelo uso da força legitimada popularmente.
As imagens são um momento necessário do nosso conhecimento da realidade. Todo o problema se trata de como se relacionar com elas de um modo epistêmicamente adequado. Dizem que apenas os anjos possuem uma intelecção direta da realidade, o conhecimento humano pressupõe uma representação e, por isso, a consciência pode recair em falha quando se torna indulgente e vaidosa ao ponto de se recusar rever seus sentimentos e suas opiniões com relação ao mundo. Então, seu delicado contato com a realidade resta prejudicado em embrutecimento. A lucidez discursiva pressupõe papel ativo das faculdades cognitivas como imaginação, pensamento analítico e intuição intelectual das essências universais mais elevadas: dos princípios das coisas em debate.
A democracia requer participação ativa dos indivíduos nos mais ínfimos detalhes. No fundo há uma disputa entre representantes e representados. Estes nunca poderão entregar indulgentemente seus interesses nas mãos dos primeiros, pois eles irão dar a volta por trás de suas consciências e usurpar o poder para si mesmos. Assim, a democracia requer consciências aptas a recusar as concepções inautênticas, generalistas, ingênua, superficiais e distorcidas da realidade que lhes são apresentadas em prol de uma compreensão histórica e culturalmente mais rica, analítica, penetrante, integralizante e abrangente das relações sociais e políticas em que vivem. Democracia requer sensibilidade. O voto, ao contrário do que a propaganda democrática institucional no faz acreditar, não significa a dimensão mais fundamental democracia, que pode ser direta, mas sim a voz e o argumento. Isto quando são levados em consideração pelos donos do poder.
Referências
- Aristóteles em Nova Perspectiva: Olavo de Carvalho
- Ser e Tempo: Martin Heidegger
- Paideia: Werner Jaeger
- O Homem e a Cidade: Leo Strauss
- A Força Normativa da Constituição: Konrad Hesse
- Metamorfoses: Ovídio
- Curso de Linguística Geral: Ferdinand de Saussure
- Meu Quintal é Maior do que o Mundo: Manoel de Barros